Caráter de presença
viva
sem ranços.
Todo dia encontro meu ocaso.
As coisas podem ter continuação,
eu, não.
As coisas tem um caminho próprio.
Eu,
princípio,
meio
e fim.
Mariana Montenegro
abril de 2022
conto, poesia, enigma, aforismo
Caráter de presença
viva
sem ranços.
Todo dia encontro meu ocaso.
As coisas podem ter continuação,
eu, não.
As coisas tem um caminho próprio.
Eu,
princípio,
meio
e fim.
Mariana Montenegro
abril de 2022
Escuto ao longe
de onde brilha
uma luz indefinível
que vive na distância.
O coração batendo
ritmado e sincopado
entre tempos
de um grande intervalo.
Escuto no silêncio
rumores de uma casa antiga
sempre a se renovar
numa atualidade perceptível.
Mergulhada no espaço
que alarga além dos limites
é concisa a escuta do imprescindível
e do longínquo.
Plena do ar puro das altas montanhas
vejo somente distâncias
e mergulho no escuro
e ouço só murmúrios.
No mais próximo de mim
o espaço sem fim.
Mariana Montenegro
março de 2022
Aos sozinhos (a cada dois que vive a sua união)
Para gostar da solidão
é preciso ter vida interior
bastante rica e habitada.
É preciso ter autonomia,
algum tipo de tônus
que compense a própria fragilidade.
Também entender que nada é por acaso;
não ser vítima
dos desencontros da vida.
Solidão é oportunidade de união;
da androginia
à hierogamia.
Do ente duplo
que anseia pela eternidade
a união sagrada.
Nessa solitude,
não há separação,
o que reste.
Quando não há nada
e nem ninguém fora,
em todo estado se é feliz agora.
Mariana Montenegro
março de 2022
O sujeito pode ser hipertrofiado e não ser forte.
Forte é quem sustenta o próprio peso.
Trocado o dado
da sorte
pela brincadeira à sério
da invenção.
A vítima do acaso
sem salvação
transforma-se
na vítima com sentido
indestrutível.
Muda da condição
da queda à ascensão
como da lama
nasce o botão.
Mariana Montenegro
março de 2022
O poeta desceu a montanha, e num misto de entusiamo e inquietação, vendo o povo reunido na praça, quis contar o que descobriu nos cumes:
Vivia numa montanha-russa,
fazendo curvas demasiado acentuadas.
Na ausência de botes,
afogava-me facilmente em si mesma.
Sem fio de prumo,
Norte,
ou estrela-guia.
Com a energia da alma
o rio flui
e se enche d´água.
De outra parte
vira ralo
e seca.
Folha seca desce a corrente,
como tudo é levada pelo vento.
O desespero anuncia a morte,
vida, seu eufemismo: a calma.
Se acalma!
Tempo carece de ritmo,
barco de leme,
folha de ro rio.
Já fui parede,
de tão dura e impenetrável
luz não me permeava.
Procurei a porta,
saí porosa.
Oh água que cai do céu!
Inunda o rio que corre
nas margens do meu papel.
Aprender
a ser melhor
para o outro.
Desenvolver o caráter
da alma
e sê-lo.
Acho que dizer o mínimo
é bastante!
Que semear estrelas
é ofício de tradução
perpétua.
A palavra metafórica é viva;
apenas alusiva, abre caminhos e visões.
A palavra literal, de trilhas já percorridas,
é morta e esqueceu de renascer.
Na pretensão da verdade,
da objetividade,
minto.
Nos devaneios da metáfora,
inventando,
sou verdadeira.
A palavra precisa encontrar o silêncio inaudito.
Só assim dirá completa um sentido.
O livro da noite
fechado na aurora,
e o livro do dia
mal se lerá.
Soante uma voz genuína
que escuta o murmúrio de fundo
e que se conhece nas formas da luz.
Minha incompletude é minha continuidade com o todo.
Mariana Montenegro
fevereiro de 2022
O sofrimento de alguém.
Uma dor que não sei de onde.
Até que o meu corpo eminente indica;
somatiza, sente.
E, percebendo, o rosto da dor começa a se formar.
A força atuando num jogo com outras tão primais quanto.
Então, levando-as todas para o coração,
fazemos uma atenta conferência.
Lá (no coração) não há crença alguma para se escorar,
além da aceitação e do amor (sabedoria),
para lidar com elas, de início tão cegas e brutas.
As forças, vindas do Fundo incomensurável e indefinível,
com a conversa, vão abrandando e ganhando forma.
Já as vejo mais claramente, e elas, a mim.
Primeiro, trocamos farpas, depois, figurinhas.
Fazemos um acorde musical,
e, finalmente, dançamos,
na glória do Amor conciliador.
Mariana Montenegro
fevereiro de 2022
Trata-se de uma simples estética do sofrimento?
Ou a imagem do santo é para nos despertar a compaixão?
"Conhecer a tragédia para não ser a tragédia".
Mas se manipula a crença no sofrimento.
A imagem como símbolo-exemplo de que o ser humano é para sofrer.
Então até hoje precisamos dessas imagens mórbidas, porque ainda não entendemos a sua mensagem.
Compaixão, bondade, humanidade.
Menos drama e mais comédia - divina!
E deixa o santo ser feliz.
MM
- Mariana, você tem religião?
-Não busco me segregar, mas me religar, portanto, não tenho uma religião. E como a essência de todas as religiões é a mesma, o amor, basta o amor. Mas respeito como um campo de conhecimento (que bebi muito, não cuspo) e na sua função social.
-Você tem espiritualidade então?
-Também me desconforta hoje em dia quando digo que tenho. Porque se ter espiritualidade é uma distinção de oposição à materialidade, então não tenho. Prefiro complementar a opor. Espírito é uma dimensão da minha constituição - soma, psique e nous. Prefiro pensar em termos de dimensões e frequências (e na minha correspondência) do que em termos sectários e em categorias. Não gosto de pensar assim, é um pensamento fechado.
MM
I-
Correntes brilhantes aportadas em local seguro.
Como as crenças que sustentam o edifício inteiro
com material de demolição.
Ilustradas do que desaba.
II-
Minha incompletude é minha continuidade com o todo.
III-
A plenitude é na condição humana,
não na forja de um ego espiritual.
IV-
Deus me livre dos monstros morais,
Deus me livre dos santos carrancudos.
Amém.
Mariana Montenegro
janeiro de 2022
A palavra salva (pelo espanto)